O que é a arte de Nabokov?



Lolita não é um romance, é uma armadilha. Nabokov não acreditava que a literatura tivesse como fim essencialmente refletir algo da 'natureza humana' ou da 'realidade' (e desde já peço perdão pelas aspas), mas que ela era redutível a si mesma, estórias pelo prazer de ouvir estórias, e assim o seu famoso Lolita seria como um belo ícone de estrume: de longe uma imagem de barro caprichada, mas de perto um aviltamento do que ele retrata.

A intenção inicial era criar um protagonista superficial e mentiroso, para que o público se dividisse entre aqueles que odeiam a ideia do livro sem entendê-la e os que simpatizam doentiamente com Humbert Humbert (disfaçando o assunto em meio às discussões sobre a estória); o próprio livro, contudo, não tem por tema a pedofilia, mas sim a falsidade num sentido bem particular. A imagem que se destaca ao ler primeiro o livro é só uma embalagem chamativa. E vou além: aquele trecho de entrevista famoso onde Nabokov diz que Lolita é uma estória de amor é uma mentira na cara dura, porque ele mesmo admite em outros lugares opiniões bem convencionais no assunto da moral. Nabokov não era um relativista, e o seu modo de ver as coisas chegava ao ponto do maniqueísmo. O bem é bom, o mal é mau. A questão é outra.

A fonte mesmo para explicação do tema se apresenta antes do primeiro capítulo, quando somos apresentados ao texto por um terapeuta que diz ali haver um ótimo recurso para a compreensão psicológica dos casos de pedofilia. Aí está a chave. Nabokov pensava que a literatura não passa de um faz de conta, algo separado de toda a realidade. Uma brincadeira inconsequente de bonecos. Ao seu ver, essa estória jamais poderia servir de algum modo para explicar o mal feito por Humbert Humbert e, se o autor a encheu de nuances, foi só para enganar melhor. É uma estória que tem por tema a natureza da arte, mas no fim Nabokov pisa na sua própria ratoeira.

Arte é mímese numa via de mão dupla, e representar a perversão por si só gera mais perversão. O próprio ato de prestar atenção numa estória não é senão replicar internamente os movimetos narrativos, da mesma forma que a nossa visão representa internamente objetos externos (se um carro nos passa a cem por hora, vemos apenas um vulto borrado, mas a própria silhueta do carro permanece bem delimitada — sinal de que vemos as coisas num espelho interno). Não à toa Platão expulsa da República os poetas, neles representando as más influências culturais. A intenção do Nabokov era ter por tema a plasticidade pura da arte, mas a plasticidade está necessariamente mesclada ao sentido que se extrai das imagens plásticas e a obra não tem por tema a natureza falsa da arte e sim uma apologia da perversão mais séria que jocosa: "Senhoras e senhores do júri, a primeira prova dos meus crimes é o que os míseros serafins, ignorantes e alados, invejaram. Eis o emaranhado de espinhos.". Não foi só um erro moral, mas do feitio criador mais íntimo dele escrever esse romance, porque na figura de Humbert Humbert Nabokov deixa escapar o sensualismo degenerado que nutre por sua própria Lolita, a arte.