I. As instruções que eu direciono a vocês, meus irmãos, diferem daquelas que eu darei aos homens do mundo — pelo menos a maneira será diferente. O pregador que deseje seguir a didática de São Paulo dará a eles leite para que possam beber em vez de mastigar alimento sólido, e servirá uma refeição mais nutritiva àqueles espiritualmente iluminados: “Ensinamos”, diz ele, “não à maneira da filosofia, mas à maneira do Espírito que nos ensina: ensinamos as coisas espirituais espiritualmente”. E ainda: “Nós temos uma sabedoria a oferecer aos que atingiram a maturidade”. Esses cuja companhia, eu tenho certeza, vocês compartilham, a não ser que em vão tenham adiado seus esforços nos estudos dos ensinamentos divinos, na mortificação dos sentidos e na meditação dia e noite da lei de Deus. Preparem-se então para experimentar pão em vez de leite. Salomão tem um pão dourado e delicioso para nos dar, o pão do livro chamado Cântico dos Cânticos. Vamos então trazê-lo à tona e dele partilhar.
II. Agora, a menos que eu me engane, pela graça de Deus vocês já compreenderam bem no livro de Eclesiastes como reconhecer e se livrar das promessas do mundo. E então o livro de Provérbios... — não é verdade dizer que a vida e conduta de vocês foram reformadas pela doutrina que ele nos infunde? Esses são dois pães que vocês tiveram a satisfação de provar, pães que vocês receberam como vindos da cesta de um amigo. Agora cheguem mais para ter deste terceiro pão que, se possível, vocês sempre reconhecerão como o melhor. Pois há dois males que constituem os únicos — ou pelo menos os principais — inimigos da alma: o amor desviante do mundo e o amor excessivo de si mesmo. Os dois livros mencionados anteriormente podem nos servir de antídoto para cada uma destas infecções. Provérbios desenraiza os hábitos perniciosos de corpo e alma com a enxada diligente do auto-controle. Eclesiastes, pelo uso da razão clarificada, logo percebe o verniz ilusório em tudo que o mundo sustenta como glorioso, discernindo mesmo entre esse verniz e a verdade profunda. Além disso, torna o Temor a Deus e a observância dos mandamentos preferíveis a todas as buscas humanas e desejos mundanos. E fazem muito bem, porque o Temor a Deus é o princípio da sabedoria e a observância dos mandamentos o seu apogeu: não há sabedoria verdadeira e completa senão evitar o mal e fazer o bem, e ninguém pode escapar do mal sem temor a Deus, e nenhuma obra é boa sem a observância dos mandamentos.
III. Pressupondo então que estes dois males já foram repelidos pela devida leitura, nós podemos proceder propriamente com o discurso contemplativo e sagrado que, como fruto dos outros dois livros, será entregue a vocês.
Antes de domar a carne e o espírito ser liberto pelo zelo à verdade, antes dos encantos e amarras do mundo serem firmemente repudiados, é um empreendimento imprudente da parte de qualquer homem presumir estudar doutrinas espirituais. Como a luz incide em vão em olhos cegos ou fechados, assim “uma pessoa sem espiritualidade não pode aceitar nada do Espírito de Deus”. Pois “o Espírito Santo da instrução foge do que é falso”, e isso é a vida de um homem sem temperança. Nem Ele nunca tomará parte com as pretensões do mundo, visto que Ele é Espírito de Verdade. Como pode haver harmonia entre a sabedoria que vem de cima e a sabedoria do mundo, que é tolice para Deus, ou com a sabedoria da carne que é hostil a Deus? Eu estou certo que o amigo que vem até nós em sua jornada não terá razões para reclamar conosco depois de termos partilhado esse terceiro pão.
IV. Mas quem partilhará esse pão? O Anfitrião está presente, é o Senhor que vocês precisam ver na partilha do pão. Quem é que poderia partilhá-lo melhor? Esta é uma tarefa que eu não ousaria arrogar a mim mesmo. Então olhem para mim como quem não quer nada. Pois eu mesmo sou um dos que buscam, um dos que mendigam junto a vocês pelo alimento da minha alma, pela nutrição do espírito. Pobre e necessitado, eu bato na porta d’Ele que, “quando aberta, ninguém pode fechar”, para que eu possa encontrar luz no profundo mistério ao qual esse discurso leva. Pacientemente, todas as criaturas olham para Ti, Senhor. “Criancinhas vão por aí pedindo pão; ninguém lhes dá uma migalha”, elas esperam diante do teu amor misericordioso. Ó Deus de Misericórdia, partilha do teu pão para essa gente faminta, através das minhas mãos se for isso que quiseres, mas com uma eficácia que é toda sua.
V. Diz-nos, eu Te imploro, por quem, sobre quem e para quem é dito: “Beija-me com os beijos de tua boca”. Como eu devo explicar tão abrupto começo, essa súbita irrupção como num diálogo que se começa a ouvir pelo meio? Pois as palavras jorram sobre nós como se indicassem um interlocutor para quem a mulher pede ou mesmo exige um beijo — quem quer que ela seja. Mas se ela pede ou exige um beijo de alguém, por que ela pede expressa e distintamente por um beijo da boca, e mesmo da boca dele, como se amantes pudessem se beijar por outro meio que a boca, ou mesmo beijar com outra boca que não a própria? Que sublime artifício de linguagem esse, trazido à vida por um beijo, e a própria figura da Escritura espirando o leitor e o instigando a seguir, com um tema fascinante para adocicar a fatiga da busca. Decerto esse modo de começar sem começar, esse engenho de entonação num livro tão antigo, não faz senão crescer a atenção do leitor. Segue-se também que essa obra foi composta não pelo gênio humano, mas pela maestria do Espírito, tão difícil de entender quanto instigante de investigar.
VI. E então o que nós devemos fazer? Passar por cima do título? Não, nem mesmo um iota deve ser omitido, porque fomos comandados a juntar os mínimos pedaços para que não se percam. O título discorre: “O princípio do Cântico dos Cânticos de Salomão”. Primeiro de tudo, notem como é apropriada o nome “Pacífico”, isto é, Salomão, no cabeçalho de um livro que abre com uma demonstração de paz, com um beijo. Notem também que por esse tipo de abertura apenas homens de mente pacificada, homens que domaram o fervor das paixões e dominaram o fardo distrativo das tarefas rotineiras, são chamados ao estudo deste livro.
VII. Repetindo: o título não é simplesmente “Cântico”, mas “Cântico dos Cânticos”, um detalhe que não é desprezível. Visto que, embora eu tenha lido muitos cânticos nas Escrituras, não me lembro de nenhum com esse nome. Israel cantou um cântico a YHWH celebrando sua fuga da espada e tirania do Faraó, e a dupla sorte que simultaneamente o libertou e o vingou no Mar Vermelho. Mesmo que cantado, ele não foi chamado “Cântico dos Cânticos”. A Escritura, se não me falha a memória, apresenta-a com as palavras: "Israel cantou este cântico em honra a YHWH”. Canção jorrou dos lábios de Débora, de Judite, da mãe de Samuel, de vários dos profetas, mas nenhuma destas canções é denominada "Cântico dos Cânticos". Vocês verão que todos eles, até onde eu entendo, foram inspirados a cantar por favores para si ou para seu povo, canções para uma vitória conquistada, para uma fuga do perigo ou para a obtenção de uma bênção há muito tempo querida. Eles não desejavam ser considerados ingratos pela benevolência divina, então todos cantaram por motivos próprios de cada um, segundo as palavras do Salmista: “Ele dá graças a Ti, ó Deus, por abençoá-lo.” Mas o próprio rei Salomão, sábio como só ele mesmo, renomado acima de todos os homens, transbordante em riquezas, seguro em sua paz, não alçava nenhum benefício em particular que o inspirasse a cantar o Cântico. Nem as Escrituras, em nenhum lugar, atribuem tal motivo a ele.
VIII. Devemos concluir, portanto, que foi um impulso divino especial sua inspiração para o Cântico celebrando a Cristo e à Igreja, o presente do amor sagrado, o sacramento da união sem fim com Deus. Aqui também está expresso os desejos crescentes da alma, sua canção matrimonial, uma exaltação do espírito derramada em linguagem figurada fecunda em seu enlevo. Não é surpresa que, assim como fez Moisés, Ele cubra com um véu a sua face, tão resplandecente quanto nos tempos do seu encontro com o profeta, visto que naquela época um número pequeno, se é que alguém, podia aguentar a visão luminosa da glória de Deus. Assim, por causa de sua excelência, eu considero esta canção de núpcias merecedora do título que a nomeia, Cântico dos Cânticos, já que aquele em honra de quem é cantado se chama singularmente Rei dos reis e Senhor dos senhores. [...]
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XII. [...]