A canção de amor de J. Alfred Prufrock [Tradução]

Pudesse eu crer que a minha fala fosse
Voltada a alguém que um dia torne ao mundo
Não daria esta chama tanto coice

Mas dado que jamais cá deste fundo
Ser vivo regressou, se ouço a verdade
Sem ter medo de infâmia te segundo.

Vamos lá então, você e eu
Quando o entardecer se estatela todo contra o céu
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Vamos lá, por certas ruas quase ermas,
Retiros murmurantes
De noites sem descanso pernoitadas em hotéis baratos
E em restaurantes com serragem no chão e ostra nos pratos.
Ruas que se seguem como um argumento entendiante
De más intenções
Te levando a uma pergunta avassaladora…
Ah, e nem me pergunte: O que é que é?
Se arrume e vamos dar no pé.

Na sala as moças vêm e vão,
Falando sobre A Criação de Adão.²

A névoa amarelada que esfrega as costas na vidraça das janelas,
A fumaça amarelada que esfrega o focinho na vidraça das janelas,
E lambe a própria língua nas beiradas do entardecer,
E se demora pairando sobre as poças no escoamento das vielas
E deixa cair a fuligem das chaminés nas costas,
Desliza pelo terraço, dá de repente um pulo, desce,
E, vendo que fazia uma noite suave de outubro,
Gira uma vez pela casa, e adormece.

Na sala as moças vêm e vão,
Falando sobre A Criação de Adão.

E haverá muito tempo
Pra a fumaça amarelada que desliza pelas ruas,
Esfregando as costas na vidraça das janelas.
E muito tempo, muito tempo
Pra arrumar um rosto que encare os rostos que encaramos,
Haverá tempo pra matar e pra criar,
E tempo pra tudo que é trabalho e mão de obra
Que levanta e larga uma pergunta no seu prato.
Tempo para você e para mim haverá
E tempo para mil indecisões,
E mil visões e revisões,
Antes da pausa pro pãozinho e chá.

Na sala as moças vêm e vão,
Falando sobre A Criação de Adão.

E haverá muito tempo
Pra perguntar: “Será que eu ousaria?” e “Será que eu ousaria?”,
E tempo pra virar-me e descer a escadaria,
Com um círculo nu onde antes o cabelo nascia.
(Eles dirão: Como o cabelo dele está ficando fino!)
Meu fraque, meu queixo abaixado que até ao colarinho inclino,
Minha gravata cara e simples, mas presa só por um pino.
(Eles dirão: E como o braço dele está ficando fino!).
Será que eu ouso
Perturbar o universo?
Num só minuto há tempo
Pra decisões e revisões que o próximo minuto torna o inverso.

Eu já conheço todas, todas elas.
Conheço a noite entrando, a aurora e as tardezinhas.
Eu já medi a minha vida toda em colherzinhas.
Conheço as vozes escorrendo feito velas
Por trás da música de um quarto fronteiriço.
O que presumir disso?

Eu já conheço os olhos, eu já conheço todo olhar, por bem ou mal.
Aqueles olhos que te fixam numa frase pronta,
E quando reduzido, retorcendo-me num pino,
Quando afixado e esperneante no mural,
Como é que então me inclino
A pôr pra fora o grosso dos meus dias e mias vias.
E o que presumir disso?

Eu já conheço os braços todos, todos os bracinhos.
Aqueles braços adornados, alvos, nus.
(Penugem de um castanho claro azul à contraluz!)
Foi um perfume de vestido
O que deixou-me distraído?
Braços pousados nu’a mesa ou mesmo envoltos em tecido.
Que presumir disso?
Por onde começar?

Posso dizer que eu já passei crepúsculos por ruas apertadas
E vi a fumaceira que baforam os cachimbos
Dos homens solitários com golas desabotoadas, debruçados nas janelas?

Pudera eu ser um par de garras disformes
Rasgando o fundo de mares silentes.
A tarde, a noite, dorme tão tranquila!
Entre as carícias em que tanto dedo longo a cinge,
Adormecida… cansada… ou finge.
Largada sobre o chão, bem aqui entre você e eu.
Será que eu, depois de tanto chá, bolinho e sorvete em baixo da marquise,
Consigo forçar este momento até a sua crise?
Ainda assim, embora eu tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora eu tenha visto a minha cabeça (um pouco mais calva) trazida numa bandeja prateada,
Não sou nenhum profeta e aí vai nada;
Eu vi o meu momento de grandeza escapulir,
Vi o Criado eterno segurar o meu casaco, e rir.
Pra resumir, eu tive medo.

E valeria a pena, no final das contas,
Depois das xícaras, da limonada e o chá que arrefeceu,
Entre o porcelanato, entre conversas de você e eu,
Será que valeria a pena
Fazer desta questão coisa pequena,
Espremer o universo numa bolinha
E jogá-la em direção a uma pergunta avassaladora?
Dizer: Sou Lázaro, voltei dos mortos sem sequela,
Voltei pra revelar-te a vida, e tudo mais!
Se qualquer um, ao pôr o travesseiro ao lado dela,
Diria: “Não é bem isso o que eu queria te dizer”
“Não era nada disso.”

Será que valeria mesmo a pena, afinal,
Será que valeria a pena assim,
Depois dos sóis poentes e das portas de quintal e das ruas respingadas,
Depois dos romances, depois das xícaras, depois das saias que o chão puxa para trás
E disso, e tanto mais?
Não dá para expressar direito o que quero dizer.
Mas como se uma lâmpada mágica projetasse a matriz dos meus neurônios
pra se ver,
Será que valeria a pena?
Se qualquer um, botando um travesseiro ou tirando o xale
E, se virando à janela, diria:
“Não era isso.”
“Não era nada disso.”

Não! Não sou o príncipe Hamlet, nem era para ser;
Sou simples servo do meu lorde e hei de apenas
Seguir em frente, fazer uma ou duas cenas,
Aconselhar ao príncipe, ser meio.
Bem diplomático, prudente, bem difuso.
Prudente, diplomático e meticuloso;
Acaciano, por ser bem obtuso;
Às vezes, na verdade, quase ridículo.
— Às vezes quase o Bobo da Corte.

Eu envelheço… Eu envelheço,
Eu dobrarei a barra das calças ao avesso.

Dividirei o cabelo para trás? Será que eu ouso morder um pêssego, de boca cheia?
Com calças brancas de flanela, hei de caminhar na areia.
Ouvi cantar uma sereia a outra sereia.

Não acho que cantarão para mim.

Vi-as montar nas ondas mar adentro,
Penteando os cabelos brancos da onda
Quando água o vento sopra preta e branca.
Nos demoramos nas câmaras do mar
Com sereias cobertas de alga vermelha e marrom nos extremos
Até que vozes humanas nos acordem, e afoguemos.

¹ Trecho da Divina Comédia (Inferno, Canto XXVII, versos 60–66)

² No original, Michelangelo. ‘A Criação de Adão’ aparece na tradução como uma metonímia do pintor (obra pelo autor).