José descansava jogado contra um colchão no meio do quarto, fingindo não pensar no trabalho. O celular de mensagens não vistas zunia mais uma, debaixo do travesseiro; o sol pregado, atravessando a tela de proteção da varanda, cingia duas nesgas de luz nos olhos sulcados; um dos papéis que tinha revisado a madrugada toda caiu da mesa no lixo pelo vento. Saísse uma hora mais cedo, pegava pouco movimento na rua, mas permanecia mais tempo na empresa; não marcava o ponto até certo horário. Chegasse um pouco mais tarde, podia escapar o final do expediente no refeitório. Abriu os olhos.
De cara para o teto, deu algumas apalpadas cegas no chão, mas não achou o controle, até se virar e perceber que estava em cima dele. Por um relance do céu já se antevia o porvir da chuva — tão diferente do clima em Rubinéia, quando menino sempre brincava sob um dia aberto e enorme; e à tarde, à sombra de um ipê, sentava na calçada com seu tio e outros velhos ouvindo rádio, no cruzamento entre a rua Carlos Drummond de Andrade e a Manuel Bandeira, um tanto sem jeito. Na FM só tocava sertanejo dor de cotovelo e eles ficavam ali, uns lacrimejando aos céus, outros fazendo careta para o asfalto. O pequeno Zezinho, de pernas magras contra o meio-fio, deixava os olhos arregalados, esperando o vento seco lhe arrancar algumas lágrimas. Tio Pereira apontava e dizia:
— Olha lá, forçando o choro.
E a velharada ria do condoído.
Davam conselhos:
— José, tudo passa nessa vida.
— José, tenha muita fé em Deus.
— Mulher é fogo, José.
Depois, na adolescência, os sermões do tio e do padrinho, que dava palestra de carreira para o colegial:
— Então... Você tem que largar isso de 'melhor' e seguir a sua própria vida. Eu não preciso nem dizer que te entendo. Todo mundo quer o sucesso, o sucesso é fácil de entender. O mundo. Dinheiro, posição, fama — poder e admiração. As pessoas querem isso, amam isso, mas quando você pára e reflete um pouco, entende a coisa e vai além. Essas coisas não são a vida, a vida mesmo. Todas essas coisas são só luxos, são só os luxos da vida. Viver é o que você faz, é aquela chama que você usa pra agir. Daí você chega a algum lugar. Entendeu? Eu não estou falando para você não querer essas coisas. Mas você tá tão imerso nisso de ser ou não alguém na vida que só parou e pronto, deixou a chama se apagar. Esse é o seu problema. Não tem nada de errado em ser um bosta pela consideração dos outros nem pela sua própria. Nesse sentido, não tem problema ser um bosta. Não faz diferença, não faz diferença nenhuma. Na verdade é até bom. Se você é um bosta, mas ainda vê o brilho da chama, está ótimo. Não é pra ter medo. Não tenha medo de ser um ninguém na vida.
Também lhe diziam muitas outras banalidades, tanto que ele só deu conta de si quando já zapeava alguns canais, tentando não reparar o vulto do seu próprio reflexo na TV: passou por uma praia onde o rio deságua no mar, a casca vazia de uma cigarra pendida por um fio, a janta de uma viúva negra entre o espernear do marido agonizante. Era melhor que tivesse cancelado a assinatura da cabo. Desligou a TV, e acabou se vendo. O cabelo grande e a barba por fazer emolduravam o rosto jovem e sério de um torso largo.
Arrumado, permaneceu um tempo sob o umbral da porta entreaberta, pensando se havia esquecido de alguma coisa. Olhou para a roupa de cama, toda enrugada com a silhueta do corpo, e concluiu rindo:
— Pra que dormir se amanhã eu vou ter sono de novo?
Já no ponto de ônibus, de novo Rubinéia lhe passou pela cabeça. À época ele já tinha TV a cabo e gostava de ver os canais de documentário. O mundo crescia diante dos seus olhos com as CG’s gradativamente maiores de planetas, sóis e galáxias; e a narração de frases grandiloquentes, com pausas prolongadas, lhe grudavam na tela. Ele parava a cada afirmação cabal sobre a natureza do espaço, do tempo, refletindo, ponderando, como se na pequenez dos átomos ou na imensidão dos astros pudesse entender a si mesmo. Ali esferas girando ao redor de esferas, lá esferas girando ao redor de esferas, sem sentido nenhum. A única coisa que se tirava daquilo era que a mente é mesmo como um buraco negro, distorcendo o espaço-tempo ao seu redor: as coisas andam lentamente sob a gravidade da sua esfera; à volta, tudo passa num piscar de olhos. Do resto já não tinha certeza, nem do espaço nem do tempo, muito menos da vida que se agita entre esses dois. Ambos eram muito diferentes na descrição dos físicos e no testemunhar ele mesmo o movimento. E as pessoas, então, mundos à parte. Tudo era cheio de cor e vida, e não resultava da procissão desinfetada de postulados bem definidos, mas era algo sempre novo.
Quando se percebeu de novo, já estava no outro ponto, ao lado do metrô. Chegou lá embaixo e a porta do vagão estava prestes a fechar; ele entrou a tempo, mas a corrida lhe tirou o fôlego: o hálito quente, ainda forte de café, saía pelas frestas da máscara e lhe embaçava os óculos.
— Você tá sabendo o que a Regina disse dele?
Uma mulher falou à outra ao lado. Logo em seguida ele colocou fones de ouvido, mas não encaixou bem no celular; só escutava o violão e o fagote sobre um vago murmurar de canto. Não teve ânimo de arrumar e deixou assim. Bocejou.
De manhã, o metrô era um carrossel para os de espírito singelo. Se a máscara diminui a respiração bucal e as lâmpadas brancas demais formam cenhos fechados; em pé, com apoio superior e pálpebras pesadas, o embalo das curvas aconchegava em seu balançar. Ficou assim, isolado, por uns segundos, lembrando outro tempo, só para depois abrir os olhos e perceber de novo que estava imerso num mar de cabeças reticentes.
Era de novo a cidade na memória. A antiga Rubinéia havia sido inundada na construção de uma represa, e a nova construída ao lado da antiga, ficando essa como um lago para a outra. A antiga também tinha nomes de poetas nas ruas, ocasionando um poema de brincadeira do Drummond que tinha ouvido na escola. Ainda sabia dois versos:
E você, poeta Cecília,
o que conta dessa viagem às vidas submersas?
Já na outra estação, lavou o rosto no banheiro do metrô antes de chegar na firma para despertar melhor. Checou o horário no celular e viu que tinha se enganado; não era amanhã, mas hoje, a reunião de vendas e a apresentação que havia preparado.
Quando chegou lá, rememorou tudo que tinha que falar e viu que estava preparado, mas foi conferir a papelada e faltava a primeira folha, justamente a mais importante pelos dados citados. Procurou no e-mail o documento, mas não tinha colocado lá, estava só no computador. Talvez devesse voltar para casa correndo, mas não havia tempo, era muito longe. Entrou na sala, vazia. Mexendo no celular, viu que haviam adiado a reunião. Um colega disse que foi por que o gerente mudou de planos no último momento e viajou o fim de semana com a família.
No escritório, o ar condicionado velho grasnava como cigarras de um verão interiorano. Não tinha o que fazer, mas também não podia sair de lá. Tentou fazer alguma coisa, mas nada. De vez em quando, de ficar mexendo o mouse na área de trabalho, outros fios davam mal contato e uma tímida estática chuviscava no monitor.
Ficou umas cinco horas assim, e foi almoçar.
Lá fora as poucas nuvens dispersas daquele sábado começaram a borrifar uma garoa fina; no cimento as marcas d'água brotavam e desapareciam à luz do meio-dia feito constelações no sereno nebuloso duma chácara.
Depois de voltar, não demorou muito até serem dispensados todos por um problema qualquer no prédio. Talvez o dia ainda não estivesse perdido. Pegou um ônibus para encontrar Douglas.
Douglas era seu amigo de infância, filho de um amigo do seu pai, e havia se mudado para a capital na mesma época que José. A diferença é que José foi com emprego garantido e sem a própria família. E se lembrar disso trouxe a José ainda outra memória de quando era menor. Douglas passava o dia assistindo a filmes e vídeos no computador, estava convencido de que aquela cidadezinha interiorana o isolava de tudo de bom no mundo. A praia, o dinheiro, as festas, as mulheres de biquíni — tudo tão longe que a febre adolescente dos ídolos fazia Douglas se crer piamente o mais coitado de todos no mundo. Não era uma fase para escapar de asserções absolutas nem de poupar hipérboles.
Um dia, Douglas leu um artigo que encontrou por acaso na Wikipédia e foi falar com José. Uma frase impressionou o garoto: Assim como é na morte, o mundo não muda, mas desaparece. Logo em seguida também estava escrito que Deus não se mostra nesse mundo, nem há garantia que haja outro, porque a solução do enigma da vida no espaço e no tempo está além do espaço-tempo, assim a permanência da ‘alma’ após a morte era apenas um desejo projetivo de quem está nesse mundo. Douglas falou isso a José e muitas outras conclusões próprias.
— E agora? A gente vai ser nada?
— Nem nada, porque o nada não é nem mesmo nada. Só não é, e pronto. A morte é o fim de tudo, mas não é início de nada. Não é nada.
A certeza com que ele falava aquilo chocava o outro. José ficou pensando naquilo por muito tempo. Deus não atendia às suas preces, nem parecia ouvir as queixas dos velhos ouvindo rádio, nem respondia as da sua mãe, pedindo que o seu pai voltasse. Quando se lembrava disso, ficava fácil acreditar que o mundo era vazio.
Antes de pensar mais, saiu do ônibus e entrou na ladeira. O entardecer caía bonito ali de cima. A luz passava oblíqua por entre as folhas, inclinando lentamente as sombras rasgadas e iluminando em trechos uma fila de formigas — que mais pareciam faíscas tontas no meio-fio. Ele descia meio vagaroso, admirando a copa das árvores, no que um farrapo de sol bateu nos seus olhos e o fez tropeçar de peito no chão. A armação dos óculos, ainda na gola da camisa, ficou sem uma das lentes que agora cambaleava perto do seu ouvido.
Ficou com raiva daquilo, que agora teria que levar para consertar. Quando chegou na casa do Douglas, ele não estava. O pai, Tarcísio, lhe atendeu à porta e chamou José para beber cerveja vendo televisão. Tarcísio era ainda mais calado que José, naquele silêncio que não constrange, mas que também pede para que algo seja dito.
— Quando é que o Douglas chega?
— Ele não te contou? Arrumou um serviço de monitoramento de câmera, vigia, uma coisa assim. Tá trabalhando de madrugada agora.
— Ah.
Mais silêncio.
— Hoje choveu, né — disse Tarcísio.
— E fez calor, e frio de manhãzinha.
— São Paulo é assim mesmo. Quatro estações num dia só.
— As quatro gradações do inferno, isso sim.
— Ah, lá tem bem mais do que só quatro.
José tapou o risinho com um gole de cerveja.
— Você é assíduo lá? Ou só esteve uma vez?
— E quando é que a gente não está lá morando aqui?
Tarcísio fez o mesmo gesto com a cerveja.
José achava que Tarcísio havia se mudado mais para ajudar o filho do que por vontade própria, embora sempre tivesse dito pensar ir para a capital. Ficaram bebendo umas duas horas vendo TV e conversando sobre nada de mais.
Quando resolveu sair de lá, o horizonte já havia escurecido. Pensou em ir numa boate, mas acabou ficando numa mesa de fora de um bar de esquina ali por perto. Como estava na elevação de um morro, o céu parecia mais amplo do que no seu apartamento. No interior, tudo aquilo seria uma tela para mil pontos de luz. Ali era um nada.
Depois de terminar uma garrafa, ele notou uma mulher ali. Encostada na parede, o polegar no lábio, ela segurava numa só mão um copo americano e um cigarro (os dois pela metade), fisgando o isqueiro com o mindinho. Os dedos retorcidos feito uma aranha morta. Era bonita.
José lhe pediu um cigarro e ficou falando com ela. Ela fazia Letras, estava lendo Cícero por causa de uma matéria de Latim, mas achava um porre.
— Cícero é aquele que falou 'ex nihiro'...
— Ex nihilo nihil fit? Acho que não é do Cícero.
José começou a se sentir meio nervoso, pressentindo que ela soubesse que ele estava falando de um assunto que não entendia nada. Começou a sentir o estômago vazio de não ter comido quase nada, mas cheio de álcool. Ele ficou conversando com ela mais um tempo, depois foi no banheiro e se demorou vomitando. Quando voltou, ela não estava mais lá, mas deixou o número num guardanapo dobrado debaixo da garrafa na sua mesa.
Ele voltou para casa como pôde: pegou o último metrô antes de fechar, e quando chegou na estação já não havia ônibus passando. Foi andando sozinho pela rua, quadra a quadra. No percurso a aura miasmática dos postes abafava qualquer sinal de estrela e o sereno mais parecia um monitor apagado.
Abriu a porta e se estatelou no colchão, mas depois de deitar não conseguia dormir. Lembrada a frase que a garota tinha falado, ele a pesquisou no Google, ao mesmo tempo em que se dava conta que nem tinha perguntado o nome dela. Do nada nada pode vir, ao nada nada pode voltar. Sentia o peso do seu corpo inerte contra o colchão enquanto lia a frase e tentava entender. Como é que a morte podia ser nada se agora ele era esse algo pressionando a cama? Se era algo, como voltaria ao nada? Parecia impossível, ou não.
O seu próprio pensamento boiava na embriaguez, e ele não conseguia refletir direito. A gente ironiza as circunstâncias ruins da vida e ri, a vida ironiza a gente e não é ela quem chora. Olhou lá fora. Da varanda, ficava claro que a cidade apaga as constelações no alto do céu a fim de sobrepor seus próprios signos na linha do horizonte. Noites em claro, signos sem sentido.