O mal conjunto é mesmo só a dor de cada um, mas a felicidade em todos é o mesmo bem.
10/09/2023 (sete meses depois)
Como discernir a morte de quem morre quando o fim que se aproxima é o seu? Era a pergunta que ocorria a José quase à beira do terraço. Luíza estava a um pouco mais que um braço de distância, com os pés descalços contra o cimento. Tremia de frio. Não era que ela quisesse morrer, era mais como se permitisse deixar a si mesma em perigo à espera de algo tomar conta do resto. O ímpeto dele era avançar com tudo e agarrá-la, mas qualquer passo em falso no chão íngreme e orvalhado derrubaria os dois lá de cima. Era madrugada, alguns carros passavam em alta velocidade na avenida próxima ao prédio. O som de ar cortado e borracha ao asfalto, chegando perto e indo embora, se prolongava infinitamente durante aqueles breves segundos — parecia a respiração da espuma tocando a areia na praia. José não tinha uma única palavra a dizer. Ela olhou para trás e, vendo o vulto dele, escorregou num trecho de lodo para o lado certo, no que José a puxou para longe da queda. Encarou bem dentro dos grandes olhos dela, de um castanho claro mesmo à contraluz. Ainda não sabia o que dizer.
10/02/2023
Um chiado de TV estática cobria tudo. José descansava jogado contra um colchão no meio do quarto, fingindo não pensar no trabalho. O celular de mensagens não vistas zunia mais uma, debaixo do travesseiro; o sol pregado, atravessando a tela de proteção da varanda, jorrava dois feixes de luz nos olhos sulcados; um dos papéis que passou revisando a madrugada toda foi levado da mesa ao lixo por uma corrente de ar. Saísse uma hora mais cedo, pegava pouco movimento na rua, mas passava mais tempo na empresa; não marcava o ponto até certo horário. Chegasse um pouco mais tarde, podia escapar o final do expediente no refeitório. Abriu os olhos.
De cara para o teto, deu algumas apalpadas cegas no chão, mas não achou o controle, até se virar e perceber que estava em cima dele. Por um relance do céu já se antevia o porvir da chuva — tão diferente do clima em Rubinéia, quando menino sempre brincava sob um dia aberto e enorme; e à tarde, à sombra de um ipê, sentava na calçada com seu tio e outros velhos ouvindo rádio, no cruzamento entre a rua Carlos Drummond de Andrade e a Manuel Bandeira, um tanto sem jeito. Na FM só tocava sertanejo dor de cotovelo e eles ficavam ali, uns lacrimejando aos céus, outros fazendo careta para o asfalto. O pequeno Zezinho, de pernas magras contra o meio-fio, deixava os olhos arregalados, esperando o vento seco lhe arrancar algumas lágrimas. Tio Pereira o denunciava:
— Olha lá, forçando o choro.
E a velharada ria do condoído.
Davam conselhos:
— José, tudo passa nessa vida.
— José, tenha muita fé em Deus.
— Mulher é fogo, José.
Depois, na adolescência, os sermões do tio e do padrinho, que dava palestra de carreira para o Ensino Médio:
— Olha... Você tem que largar isso de 'melhor' e seguir a sua própria vida. Eu não preciso nem dizer que te entendo. Todo mundo quer o sucesso, o sucesso é fácil de entender. O mundo. Dinheiro, posição, fama — poder e admiração. As pessoas querem isso, amam isso, mas quando você pára e reflete um pouco, entende a coisa e vai além. Essas coisas não são a vida, a vida mesmo. Todas essas coisas são só luxos, são só os luxos da vida. Viver é o que você faz, é aquela chama que você usa pra agir. Daí você chega a algum lugar, tendeu? Eu não estou falando para você não querer essas coisas. Mas você tá tão imerso nisso de ser ou não alguém na vida que só parou e pronto, deixou a chama se apagar. Esse é o seu problema. Não tem nada de errado em ser um bosta para os outros nem para si mesmo até. Não faz diferença, não faz diferença nenhuma. Na verdade é até bom. Se você é um zero à esquerda, mas ainda vê o brilho no que faz, está ótimo. Não é pra ter medo. Não tenha medo de ser um ninguém na vida.
Também o faziam ouvir muitas outras ladainhas, tanto que ele só deu conta de si quando já zapeava alguns canais, tentando não reparar o vulto do seu próprio reflexo na TV meio apagada contra a luz do sol: passou por uma praia onde o rio deságua no mar, a casca vazia de uma cigarra pendida por um fio, a janta de uma viúva negra entre o espernear do marido agonizante. Era melhor que tivesse cancelado a assinatura da cabo. Desligou a TV, e acabou se vendo. A superfície redonda da tela de tubo, distorcendo como num olho mágico a pele amassada e os olhos exprimidos, davam ao rosto um ar de possesso que ele queria ignorar. O cabelo grande e a barba por fazer também não ajudavam.
Arrumado, permaneceu um tempo sob o umbral da porta entreaberta, pensando se havia esquecido alguma coisa. Olhou para a roupa de cama, toda enrugada com a silhueta do corpo, e concluiu rindo:
— Pra que dormir se amanhã eu vou ter sono de novo?
***
Já no ponto de ônibus, de novo Rubinéia lhe passou pela cabeça. À época ele já tinha TV a cabo e gostava de ver os canais de documentário. O mundo crescia diante dos seus olhos com as CG’s gradativamente maiores de planetas, sóis e galáxias; e a narração de frases grandiloquentes, com pausas prolongadas, o grudavam na tela. Ele parava a cada afirmação cabal sobre a natureza do espaço, do tempo, refletindo, ponderando, como se na pequenez dos átomos ou na imensidão dos astros pudesse entender a si mesmo. Ali esferas girando ao redor de esferas, lá esferas girando ao redor de esferas, sem sentido maior, feito espuma borbulhando no oscilar das ondas em Santos. A única coisa que se tirava daquilo era que a mente é mesmo como um buraco negro, distorcendo o espaço-tempo ao seu redor: as coisas andam lentamente sob a gravidade da sua esfera, à volta tudo passa num piscar de olhos. Do resto já não tinha certeza, nem do espaço nem do tempo, muito menos da vida que se agita entre esses dois. Ambos eram muito diferentes na descrição científica e no ver ele mesmo o movimento das coisas ao redor. E as pessoas, então, mundos à parte. Tudo era cheio de cor e vida, e não resultava de fórmulas facilmente expressas, mas era algo sempre novo.
Quando se percebeu de novo, já estava no outro ponto, ao lado do metrô. Ao chegar lá embaixo, a porta do vagão estava prestes a fechar; ele entrou a tempo, mas a corrida lhe tirou o fôlego. O hálito quente, ainda forte de café, saía pelas frestas da máscara e lhe embaçava os óculos.
— Menina, você ficou sabendo do marido da Regina com outra?
Uma mulher falou à outra ao lado. Logo em seguida ele colocou fones de ouvido, mas não encaixou bem no celular; só escutava o violão e o fagote sobre um vago murmurar de canto — Cartola. Não teve ânimo de arrumar e deixou assim. Bocejou.
De manhã, o metrô é um berço para os de espírito singelo. A máscara diminui a respiração bucal e as lâmpadas brancas demais formam cenhos fechados. Em pé — com apoio superior e pálpebras pesadas — o embalo das curvas aconchega ao balançar. Ficou assim, distante, por uns segundos, lembrando outro tempo, só para depois abrir os olhos e perceber de novo que estava imerso num mar de cabeças abaixadas.
A antiga Rubinéia havia sido inundada na construção de uma represa, e a nova construída ao lado da antiga, ficando essa como um lago para a outra. A antiga também tinha nomes de poetas nas ruas, ocasionando um poema de brincadeira do Drummond que tinha ouvido na escola. Ainda sabia dois versos:
E você, poeta Cecília,
o que conta dessa viagem às vidas submersas?
Já na outra estação, lavou o rosto no banheiro do metrô para despertar melhor antes de chegar à firma. Checou o horário no celular e viu que tinha se enganado; não era amanhã, mas hoje, a reunião de vendas e a apresentação que havia preparado.
Quando chegou lá, rememorou tudo que tinha que falar e viu que estava pronto, mas foi conferir a papelada e faltava a primeira folha, justamente a mais importante pelos dados citados. Procurou no e-mail o documento, mas não tinha posto lá, estava só no computador. Voltar para casa estava fora de questão. Era muito longe. Entrou na sala. Vazia. Mexendo no celular, viu que haviam adiado a reunião. Um colega disse que foi porque o gerente mudou de planos no último momento e viajou o fim de semana com a família.
No escritório, o ar-condicionado velho zumbia feito cigarras de um verão interiorano. O barulho, mais intenso que alto, dava a impressão que todo o ambiente estava carregado de uma tensão elétrica prestes a estourar. Não tinha o que fazer, mas também não podia sair dali. Tentou fazer alguma coisa, mas nada lhe ocorria. De vez em quando, de ficar mexendo o mouse na área de trabalho, outros fios davam mal contato e uma tímida estática chuviscava no monitor.
Ficou umas quatro horas assim, e foi almoçar.
Lá fora as poucas nuvens dispersas daquele sábado começaram a borrifar uma garoa fina; no cimento as marcas d'água brotavam e desapareciam à luz do meio-dia feito o sereno de uma chácara onde as nuvens fugidias deixassem entrever constelações.
Depois de voltar, não demorou muito até serem dispensados todos por um problema qualquer no prédio. Talvez o dia ainda não estivesse perdido. Pegou um ônibus para encontrar Douglas.
Douglas era seu amigo de infância, filho de um amigo do seu pai, e havia se mudado para a capital na mesma época que José. A diferença é que José foi com emprego garantido e sem a própria família. Quando eles eram mais novos, Douglas passava o dia assistindo a filmes e vídeos no computador. Estava convencido de que aquela cidadezinha interiorana o isolava de tudo de bom no mundo. A praia, o dinheiro, as festas, as mulheres de biquíni — tudo tão distante que a idolatria adolescente fazia Douglas se crer o mais coitado de todos os jovens do mundo.
Um dia, Douglas leu um artigo que encontrou por acaso na Wikipédia e foi falar com José. Uma frase impressionou o garoto: Assim como é na morte, o mundo não muda, mas desaparece. Logo em seguida também estava escrito que Deus não se mostra neste mundo, nem há garantia que haja outro, porque a solução do enigma da vida no espaço e no tempo está além do espaço-tempo, assim a permanência da ‘alma’ após a morte era apenas um desejo projetivo de quem está neste mundo. Douglas falou isso a José e algumas conclusões próprias.
— E agora? A gente vai ser nada?
— Nem nada, porque o nada não é nem mesmo nada. Só não é, e pronto. A morte é o fim de tudo, mas não é início de nada. Tipo, não é nada.
A certeza com que ele falava aquilo chocava o outro. José ficou pensando naquilo por muito tempo. Deus não atendia às suas preces, nem parecia ouvir as queixas dos velhos ouvindo rádio, nem respondia as da própria mãe, pedindo que o pai voltasse. Não era difícil acreditar num mundo vazio.
Antes de pensar mais, saiu do ônibus e entrou na ladeira. O entardecer caía bonito ali de cima. A luz passava oblíqua por entre as folhas, inclinando lentamente as sombras rasgadas e iluminando em trechos uma fila de formigas — que mais pareciam faíscas tontas no meio-fio. Os prédios residenciais de Higienópolis, com suas fachadas de bar-lanchonete e o aglomerado de pessoas ao redor, lembravam formigueiros. Ele descia meio vagaroso, admirando a copa das árvores, no que um farrapo de sol bateu nos seus olhos e o fez tropeçar de peito no chão. A armação dos óculos, ainda na gola da camisa, ficou sem uma das lentes, que agora cambaleava perto do seu ouvido.
Cerrou o punho por causa daquilo. Agora teria que levar para consertar. Chegando à casa de Douglas, ele não estava. O pai, Tarcísio, lhe atendeu à porta e chamou José para beber cerveja vendo televisão. Tarcísio era ainda mais calado que José, naquele silêncio que não constrange, mas que também pede para que algo seja dito.
— Quando é que o Douglas chega?
— Ele não te contou? Arrumou um serviço de monitoramento de câmera, vigia, uma coisa assim. Tá trabalhando pela madrugada agora.
— Ah.
Mais silêncio.
— Hoje choveu, né — disse Tarcísio.
— E fez calor, e frio de manhãzinha.
— São Paulo é assim mesmo. Quatro estações num dia só.
— As quatro gradações do inferno, isso sim.
— Ah, lá tem bem mais do que só quatro.
José tapou o riso de canto de boca com um gole de cerveja.
— Você é assíduo lá? Ou só esteve uma vez?
— E quando é que a gente não está lá morando aqui?
Tarcísio fez o mesmo gesto com a cerveja.
José achava que Tarcísio havia se mudado mais para ajudar o filho do que por vontade própria, embora sempre tivesse cogitado ir para a capital. Ficaram bebendo umas duas horas vendo TV e conversando qualquer coisa. A moto elétrica que Douglas comprou na semana que foi contratado, o fato dela não exigir carteira, o retrovisor que quebrou.
— Fazia tempo que você não vinha, rapaz. Volte mais vezes — e lhe deu dois tapinhas nas costas.
Saído de lá, o horizonte já havia escurecido. Pensou em ir a uma balada, mas acabou ficando numa mesa à calçada de um bar de esquina ali por perto. Como estava na elevação de um morro, o céu parecia mais amplo do que no seu apartamento. No interior, tudo aquilo seria uma tela para mil pontos de luz. Ali era breu sem fim.
Depois de terminar uma garrafa, notou uma mulher ali. Encostada na parede, o polegar no lábio, ela segurava numa só mão um copo americano e um cigarro — os dois pela metade — fisgando o isqueiro com o mindinho. Os dedos retorcidos feito uma aranha morta. Era bonita.
José lhe pediu um cigarro e ficou falando com ela. Ela fazia Letras, estava lendo Cícero por causa de uma matéria de Latim.
— Cícero é aquele que falou 'ex nihiro'...
— Ex nihilo nihil fit? Acho que não é do Cícero.
José se sentia meio nervoso, pressentindo que ela soubesse que ele estava falando de um assunto de que não entendia nada. Começou a se sentir mal de ter comido pouco, mas cheio de cerveja. Ele ficou conversando com ela mais um tempo, depois foi no banheiro e se demorou vomitando. Quando voltou, ela não estava mais lá, mas deixou o número num guardanapo dobrado sob uma das garrafas.
Ele voltou para casa como pôde. Pegou o último metrô antes de fechar, e quando chegou à estação já não havia ônibus passando. Foi andando sozinho pela rua, quadra a quadra. No percurso a aura miasmática dos postes abafava qualquer sinal de estrela, e o sereno mais parecia um monitor apagado.
***
Abriu a porta e se estatelou no colchão, mas depois de deitar não conseguia dormir. Lembrada a frase que a garota tinha falado, ele a pesquisou no Google, ao mesmo tempo que se dava conta que nem tinha perguntado o nome dela. Do nada nada pode vir, ao nada nada pode voltar. Sentia o peso do seu corpo inerte contra o colchão enquanto lia a frase e tentava entender. Como é que a morte podia ser nada se agora ele era esse algo pressionando a cama? Se era algo, como voltaria ao nada? Parecia impossível, ou não.
O seu próprio pensamento boiava na embriaguez, e ele não conseguia refletir direito. A gente ironiza os momentos ruins da vida e ri, a vida ironiza a gente e não é ela quem chora. Olhou lá fora. Desde a varanda, ficava claro que a cidade apaga as constelações ao topo do céu a fim de sobrepor seus próprios signos na linha do horizonte. Noites em claro, signos sem sentido.