Esse texto começa com uma discussão comum (o transsexualismo e a validade de certos conceitos e a invalidade de outros), em seguida trata do norminalismo de Wilfrid Sellars e do ceticismo, depois passa para a ideia de que há sempre algo indefinido e evidente diante de nós que é conhecido e a fonte de todos os outros conhecimentos, depois para a ideia de que não compreender esta evidência só é possível por causa de um embaralhamento ou velamento na mente através das próprias palavras, uma confusão gerada pela grande quantidade de opiniões opostas presentes na cabeça da pessoa, que ela não consegue conciliar. Depois trata da ideia de que esse algo evidente, o Ser, não pode ser alheio a tudo quanto somos, sentimos e pensamos.
Você está numa conferência na faculdade e uma pessoa no palco se apresenta: "Oi, eu sou Jô e me identifico como homem." Essa pessoa - vestindo calças largas e regata - é baixa, tem ombro e cintura estreita e quadril largo, traços faciais delicados e voz aguda. Você fala por reflexo: "É mulher". Um colega ao lado se vira para você com uma cara de espanto e desdém, e diz:
"Ele pode até ser biologicamente mulher, mas se descobriu transgênero e se identifica como homem. É um homem trans. Sexo e identidade de gênero não são a mesma coisa. Não seja ignorante."
Você responde: "Se é só homem trans, então não é homem homem."
Ele responde: "Homem é só uma convenção social, um nome que associamos a certas imagens. Ser homem é performar ser homem. Dizer que ele não é 'homem homem' não diz nada sobre ele, mas diz muito sobre você."
A discussão que você acabou de passar é insolúvel sem o conhecimento do problema dos universais (as substâncias [indivíduos sujeitos a qualidades] e consequentemente as suas qualidades como 'homem' ou 'mulher'), do nominalismo em particular e da degeneração da filosofia moderna. O interlocutor do diálogo defende um nominalismo vulgar, porque ao mesmo tempo sustém que os nomes como "homem" são apenas convenções sociais e que os termos "sexo" e "identidade de gênero" são conceitos distintos além de mera convenção, porque se fossem apenas outras convenções ninguém que simplesmente pensasse o contrário precisaria aceitar essa distinção (isto, ou se reduz toda pretensão de conhecimento à vontade de potência, imposição de vontade). Um nominalista moderno mais rebuscado diria o seguinte: "Os realistas pensavam no Ser como um ente que existia por si só, e que o próprio Ser era a origem da existência dos particulares, dos entes individuais. Eles estavam errados porque o Ser não é algo em si mesmo, mas apenas uma relação entre dois termos, dois particulares. Se digo que A é B, A e B são reais, mas a sua relação de identidade é apenas uma projeção mental posterior."
O amor, neste ponto de vista, só existe enquanto relação entre amante e amado, dependendo deles. Se não há mais um dos termos, a relação se acaba e o amor some, sem que possa subsistir independente daqueles que amam, como afirma Paulo de Tarso nas suas cartas a Coríntios.
A contradição deste ponto de vista é evidente, porque o nominalismo moderno é em tese uma escola filosófica, logo afirma a possibilidade do conhecimento (para que usar estes termos filosóficos e pensar com eles, se toda terminologia não rende conhecimento nenhum?). Contudo, cai nos critérios do cético Agripa, critérios que confirmam o ceticismo (a afirmação da impossibilidade do conhecimento). Segundo Agripa, toda formulação de possibilidade do conhecimento caía num de dois critérios: ou há uma regressão infinita no argumento ou uma escolha arbitrária (através de uma petição de princípio, por exemplo, "Como eu não estou mentindo, claro que eu estou dizendo a verdade" [um modo rebuscado de dizer que algo é de certo modo e pronto]). O problema do nominalismo moderno é o seguinte: se o Ser não é real por ser apenas uma relação, o mesmo vale para o próprio conhecimento dos particulares sustentado pelo nominalista, porque o conhecimento necessariamente é a relação entre um sujeito conhecedor e um objeto conhecido deste ponto de vista. Portanto, o Ser não existiria por ser apenas uma relação, mas o conhecimento sim. Uma distinção arbitrária entre relações. A isso o nominalista mais radical e rebuscado poderia replicar: "O nominalismo não defende que o Ser é apenas uma relação, mas que é apenas uma função lógica. Assim não se pode sequer afirmar que função lógica e relação entre termos tenham o mesmo sentido."
Há também aí o mesmo problema: o verbo ser da frase "O Ser é uma função lógica" é tomado como mais que uma hipótese lógica, é tomado como uma função lógica de peso maior que todas as outras.
Uma vez demonstrado que o nominalismo corrente não passa de ceticismo, tratemos deste segundo. O ceticismo é a afirmação da impossibilidade do conhecimento. Digamos que uma terceira pessoa entrasse na discussão entre você e o seu colega da faculdade e lhe dissesse:
"O conhecimento é normalmente definido como crença justificada, desde a época de Platão. Porém, não há justificativa para conhecimento nenhum. Inclusive, isso mesmo que eu estou falando agora não passa de mais uma opinião sem justificativa. O ceticismo, ao contrário das outras pretensas escolas filosóficas, é uma arte que se faz, uma prática de questionar a pretensa justificativa de qualquer crença que seja, não um conhecimento que se tenha."
Você: "Mas se você sabe que não há conhecimento, isso não é um conhecimento? Assim como o 'só sei que nada sei' socrático."
O cético: "Não, pois assim como eu disse antes, a afirmação do ceticismo também é uma crença sem justificativa."
Você: "Mas sendo assim não haveria conhecimento nenhum."
O cético: "Justamente."
Digamos que você tivesse algum conhecimento de filosofia e usasse um argumento dentro de uma tradição metafísica:
Você: "Se você quer uma crença justificada, é só encontrar qualquer evidência. O que é evidente se justifica por si mesmo, uma vez que a hipótese contrária à evidência não pode ser afirmada sem cair em contradições. Por exemplo: "O Infinito necessariamente existe". Por quê? Se alguém afirma 'O Infinito necessariamente não existe', por definição já não pode estar falando do próprio Infinito pura e simplesmente, já que este conceito é plenamente negativo (a não finitude, o sem limites, o ilimitado) e o 'não existir' na frase é afirmado como limitação. O Ilimitado não pode estar sujeito a limites.”
O cético: "Mas isso é uma tautologia! Dizer que o Infinito existe porque não se pode dizer o contrário é uma forma elaborada de dizer que o Infinito é o Infinito, que X é X."
Você: "E ser uma tautologia necessariamente torna a afirmação errada?"
O cético pensa um pouco e diz: "Então me prove que o Infinito é o Infinito."
Você: "Como assim? Não dá para provar ou demonstrar definições. O Infinito é o Infinito, porque assim se entende quando se diz ou escuta a palavra."
O cético: "Não, a questão é mais profunda que isso. Se você não pode demonstrar uma definição, como eu posso saber que eu ou você a entendemos? Se não podemos demonstrar isso, já não há justificativa, então não passa de mais uma crença injustificada. Você fala como se as palavras por si só se referissem ao que elas querem dizer, mas a exemplo da palavra 'nada' não pode ser assim. Nada é o que não existe, então como a palavra 'nada' pode se referir ao que não é? Há que se duvidar de tudo."
Você: "Por que há que se duvidar de tudo?"
O cético: "Você já está pegando o jeito! Essa é só mais uma crença injustificada. Logo mais você abandonará essa superstição socrática de conhecimento e não dirá mais que homem é homem e mulher é mulher."
Você: "Não sei, não. 'Nada' me parece não querer se referir a uma realidade que não existe (a um ser que não existe, uma contradição de termos), mas a certo estado interior que se produz quando alguém não percebe uma coisa e crê descobrir que ela de fato não existe. Isto é, ignorância."
O cético: "Veja, não adianta colocar a referência real do 'nada' em outra coisa. Você pode ir justificando cada um dos problemas, mas no final chegará até as noções básicas da lógica. A questão é: qual é a justificativa da própria lógica? Não há nenhuma, então é tudo só opinião sem justificativa."
Este é o dilema em que qualquer um a afirmar o conhecimento se encontra alguma vez na vida. Se não é possível provar demonstrativamente o conhecimento, como afirmá-lo?
Um quarto integrante entra na conversa e diz: "Você está tentando refutar a lógica usando a própria lógica, mas essa falta de justificativa só existe no discurso, não no sujeito que é condição do discurso e o antecede. Ora, eu percebo que estou aqui na sua frente neste instante. Segundo sua lógica, isso seria apenas mais uma crença injustificada, uma vez que não posso demonstrar plenamente o sentido do que eu falo. Contudo, ainda percebo. Mesmo na hipótese onde tudo que eu percebo fosse uma ilusão (seguindo sua ideia de questionar a tudo), ainda assim precisaria haver algo por trás da ilusão para que ela fosse projetada por cima. É impossível eu perceber neste instante e não haver nada em sentido estrito. Esse algo indeterminado é conhecimento e não apenas mais uma crença injustificada, porque é evidente. Você também percebe, não?"
O cético, como que falando sem pensar, diz: "Isso não é evidente, eu posso negar. Duvido mesmo até que você perceba alguma coisa." Depois arregala os olhos.
O quarto integrante: "É bem possível que, por confusão, você duvide até mesmo que você perceba alguma coisa. Eu percebo com meus cinco sentidos os objetos correspondentes a eles, e isso já não pode ser nada. A minha percepção já me basta. Você fez essa expressão porque percebe isso, não? Mesmo que você me questione novamente a definição das palavras, isso não importa porque eu as conheço dentro de mim, onde explicito a evidência dos sentidos e a impossibilidade de negar que algo há. O argumento contra o ceticismo não é uma prova lógica, mas a revelação de uma evidência. Uma pessoa, em seu testemunhar a si mesma, é anterior a tudo quanto fale, por mais que não possa justificar o seu conhecimento da definição das palavras. Uma vez demonstrada claramente a evidência, as palavras tornam-se dispensáveis, porque é a evidência que é conhecimento garantido. A exteriorização da evidência em discurso é como um laxante: uma vez tomado, entra no sistema e sai junto com as impurezas. Ou seja: quem percebe percebe algo, seja a aparência percebida igual ou diferente ao que aquele algo é mesmo. De todo modo, é algo. O conhecimento é crença justificada, e esse algo indeterminado se justifica por ser evidente. Diz-se que algo é evidente quando não se pode negá-lo de modo unívoco. Quem percebe já não pode negar univocamente que percebeu algo ("algo necessariamente não existe"), porque é impossível perceber nada e perceber ao mesmo tempo (repito aqui o óbvio de novo). Uma vez admitida a evidência, há conhecimento e, portanto, não pode haver ceticismo a não ser como uma crença injustificada, mas o conhecimento (tendo justificativa) é superior. Ou seja, a crença no ceticismo não é só injustificada — como você mesmo afirma—, mas é necessariamente errada. Isso é impossível não dizer. Um cético como você convida a presumir sua intenção em falar que toda crença é injustificada (já que é espantoso ver alguém negar de todo a possibilidade do conhecimento a partir da lógica e parecendo por um momento ter razão), definindo (corretamente) conhecimento como crença justificada. É verdade que não é possível saber essa intenção de forma definitiva a princípio. O ceticismo, portanto, é de fato uma arte (o que para você cético também é só mais uma crença injustificada, por mais que você afirme isso também). Um truque retórico para dar a impressão ao interlocutor que ele não sabe de nada. Eis uma boa hipótese da sua intenção: uma aposta de Pascal às avessas. Pascal disse que, podendo haver Deus ou não, era melhor acreditar porque não havia nada a perder e tudo a ganhar. O cético acredita que pode haver conhecimento ou não, mas jamais entendeu direito a evidência (por embaralhar tudo interiormente na multiplicidade das possíveis opiniões sobre algum assunto) e por isso em todas as circunstâncias acaba pendendo para o lado da dúvida, assim adquirindo o hábito de tirar a justificativa de toda crença. O cético acusa implicitamente os outros de presumir e ele mesmo jamais presume, mas sempre ignora (a evidência). Na verdade, no fim das contas, presume que o outro saiba tanto quanto ele e nivela a todos por baixo. Ignorar, seja por cinismo ou autoengano, que é preciso admitir algo uma vez que se perceba qualquer coisa é a descrição mais adequada do que é ceticismo. O ceticismo só funciona uma vez que o interlocutor, por imitação, passe a também negar essa evidência. Daí que toda força de convencimento que o ceticismo possa ter não passa de um macaquismo, um cacoete. Também pode-se dizer o seguinte: a sua formulação do ceticismo é um arranjo de pressupostos para tentar fazer que, em cada afirmação que se diga, na prática por trás afirme-se 'não sei'. Mas para afirmar que toda crença é injustificada — e o ceticismo é só mais uma delas —, primeiro é preciso retirar qualquer base ulterior da crença injustificada. No fim, em tudo quanto você afirma você admite que algo (uma opinião) possa vir do nada. Adiciono ao que eu já disse: o ceticismo não é uma arte qualquer, é um acolchoar vazios — como se algo fossem além das palavras de alguém inconsciente do que diz."
O cético: "Isso tudo que você falou ainda não me prova nem demonstra nada."
O quarto integrante: "Para demonstrar primeiro é preciso mostrar. E eu já te disse: o argumento contra o ceticismo é a explicitação de uma evidência e basta que cada pessoa ateste pela sua própria percepção para extirpar o ceticismo no nível individual. Mas se você insiste em não aceitar o evidente, então isso em nada desprova o conhecimento da evidência e a invalidade do ceticismo, mas põe em xeque a sua pergunta. Para falar é preciso saber pelo menos a crença que você tem, por injustificada que seja. Mais: se você não soubesse que se considera o cético, não poderia continuar interpretando esse papel. Adiciona ainda algo que pode não ser de todo pertinente a esta discussão, mas vai aí mesmo assim: o piedoso e o cético são ignorantes. O piedoso, ciente de ser ignorante, deseja a sabedoria e a busca. O cético, ciente de ser ignorante, deseja a sabedoria, mas não aceita estar privado dela, então finge que a ignorância é sabedoria.."
Você: "Então, voltando à questão inicial, aqueles que afirmam o ceticismo ignoram a evidência e os que afirmam o conhecimento conhecem algo indeterminado, mas e deste algo como é que se parte até o conhecimento das coisas?"
O quarto integrante: "É como eu disse: ou as coisas são o que elas aparentam ser ou são outra coisa, distinta do que aparentam ser do modo que as percebemos pelos sentidos. Na segunda hipótese, nada podemos falar sobre esse algo, então não tentemos nos comunicar através dela (não precisamos mais ser céticos mesmo abertos a esta hipótese, porque já sabemos que há conhecimento). Na primeira, basta buscar através dos sentidos e da capacidade de ação investigativa o que cada coisa é. A exemplo do início da discussão, se a pessoa que estava dando a palestra tiver uma infecção urinária, terá de ir ao médico e ele, investigando o problema, poderá dizer se a pessoa é homem ou mulher. Claro que a resposta não é de todo desconhecida para aqueles que a viram hoje. Mas sentidos de imediato, por si mesmos, não são suficientes, porque não são exaustivos e podem não penetrar ambiguidades, por isso é preciso investigar por tempo o bastante para tirar uma conclusão assertiva. Contudo, não é como se o sexo de uma pessoa fosse impossível de saber. O urologista, ao investigar o corpo do paciente, reduz o objeto de percepção ao Ser evidente. Ao concluir-se que tal pessoa é mulher, mas por vontade gostaria de ser homem, como é amplamente admitido no movimento trans, então logo se vê que ser trans é um problema. Desejar e ser privado do objeto de desejo causa sofrimento. E quando o objeto de desejo é uma impossibilidade, então o sofrimento será tão grande quanto a barreira intransponível. Não é de surpreender que os autodeclarados trans se suicidam em porcentagens muito mais altas do que a média. Essa é a conclusão realista a se tirar."
Chega mais um outro na conversa:
O nominalista psicológico: "Tudo que você disse tem por base a evidência dos dados perceptivos, mas esses dados não são eficazes por si próprios. O dado é epistemologicamente eficaz, mas a eficácia é dependente da interpretação do sujeito. Todo o estar ciente [de algo] é uma questão meramente linguística. Tudo o que você disse está ultrapassado desde o século XX com Wilfrid Sellars, é uma nostalgia do passado."
O quarto integrante: "Vejamos. Duas pessoas observam o sereno estrelado de madrugada. O primeiro diz algo sobre aquilo, seja uma expressão poética do céu noturno ou um teorema que descreva o percurso dos astros no céu; o segundo não o escuta e se mantém olhando para o alto em silêncio. O que no interior do segundo opera de maneira 'puramente linguística' para contemplar as estrelas? Esse exemplo é uma imagem muito parecida com aquela de um poema do Whitman: Quando ouvi o versado astrônomo, quando vi as provas e as tabelas arranjadas em colunas diante de mim, quando me deram mapas e diagramas para somar, dividir e medir a tudo, quando de onde eu estava ouvi o astrônomo em cima do tablado da classe aclamado por todos, que náusea eu tive. Então me levantei e fui embora só, até me dar com o relento místico da noite lá fora e, de quando em quando, erguer o mudo olhar para as estrelas. Ora, que se conceba algo conhecido para além do que pode ser dito e demonstrado com figuras por si só já nos possibilita expurgar a sua opinião. Basta entender o que os neoplatonistas chamariam da distinção entre doxa e episteme, basta que alguém consiga entender isso claramente e já não pode mais admitir essa opinião, porque perceberá ele mesmo que antes de falar algo há uma intenção de se referir a certos sentidos e não a outros, que esta intenção é ela mesma não discursiva e por ser assim é que permite escolhermos dizer a mesma coisa de maneiras diferentes. É o que os escolásticos chamavam de 'verbum mentis'. Todo o problema está na sua preconcepção de que só há movimento, então mesmo o conhecimento (ou a crença, no caso do cético) precisa ser pura atividade e não algo imutável de modo transcendente — além do espaço e do tempo. Essa preferência unilateral pela atividade não é senão um preconceito dos nossos tempos, e não uma verdade fixa, até porque se a ideia é atividade ela não pode ser fixa, não pode ser o fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. A evidência de que algo há e não o nada é esse fundamento, e isso é óbvio tão logo se desfaça a confusão verbal interior. Isso, ou você há de falar de um ‘dogmatismo de que há algo e não o nada’ por pura ignorância. Por outro lado, não é preciso considerar a hipótese de que não haja fundamento assim, de que não haja verdade, uma vez desmentido o ceticismo."
Ainda mais um outro chega na conversa:
O questionador: "Você diz que o Infinito necessariamente é. Não discordo, mas com essa ideia você quer nos fazer aceitar mais do que é preciso admitir com ela. O Infinito não precisa ser um Deus pessoal como nas religiões monoteístas, pode ser apenas uma estrutura da realidade."
O quarto integrante: "Se vemos o que vemos e há uma 'estrutura da realidade de fundo', então tudo aquilo que se contém no que vemos só pode vir desta estrutura. Ora, a causa só pode ser mais do que o efeito. Exemplo: o fogo é mais quente do que a matéria incendiada ao redor dele; tão logo o composto seja tão quente quanto o fogo, já não é um efeito do fogo, mas o próprio fogo. Percebemos que as coisas inanimadas são, logo a estrutura é o Ser. Percebemos que as plantas e animais têm vida, logo essa estrutura tem Vida. Percebemos que os homens têm inteligência, logo Deus tem Inteligência. O Infinito não pode ser reduzido a um esqueleto apático de tudo, como as paredes frias de um hospital que assistem a um doente gemer até a morte, permanecendo indiferente enquanto o paciente vira um cadáver. Isto seria a redução da causa a qualidades inferiores às pertencentes ao efeito."
O questionador: "Você pressupõe que estas caraterísticas humanas são superiores às inumanas."
O quarto integrante: "Não, porque uma pedra é um ente e um homem é um ente vivo, sensível e inteligente. Ser homem é necessariamente mais do que ser pedra. O que você está sugerindo é um viés da inteligência para consigo mesma, mas note que sequer é possível sugerir um 'viés da pedra', porque o conceito de viés só se torna aplicável a um ente vivo e sensível."
O questionador: "E se o que vemos vem apenas da nossa mente e não da estrutura da realidade?"
O quarto integrante: "De todo modo você terá que admitir que a nossa mente se origina do Infinito, o que dá no mesmo para os fins desta conclusão."
O questionador: “Por que esse algo indefinido seria o Infinito, se o Infinito tem definição?”
O quarto integrante: “A definição do Infinito é puramente negativa, é o que não tem limites. A definição do Infinito é não definir, é dizer tudo aquilo que o Infinito não é. Por não ter limites, o Ilimitado abarca mesmo os entes limitados.”
O questionador: "O algo indefinido e o Infinito são o mesmo?"
O quarto integrante: "O algo evidente indeterminado é o Ser e o Infinito é o Além Ser ou Não Ser. O princípio (Ser) está para o principiado assim como o espaço exterior está para as estrelas. O espaço é espaço haja nele estrelas ou não. As estrelas são apenas uma entre muitas possibilidades para o espaço, assim como pode conter-se nele asteroides, luas, nebulosas ou um planeta com florestas, animais e gente, ou vácuo - ausência de corpos visíveis. Já as estrelas precisam de espaço para ser estrelas, elas em tudo depende de que haja espaço para ocupar, senão já não poderiam ser as estrelas que vemos no sereno. O espaço, por ser necessário para as estrelas e independente delas, é princípio das estrelas. O princípio de tudo quanto existe é o Ser, porque tudo que existe existe apenas na medida em que possui o existir do Ser. Contudo, ainda há diferença entre a possibilidade no princípio (o conceito supra-sensível) e a estrela vista no céu noturno. Num lado há causa e no outro efeito. O 'princípio do princípio' é o Não Ser, ou 'Nada'. Nada é não haver diferença entre causa e efeito, uma vez que só há um Ser Supremo, uma Realidade, a qual para se diferenciar do 'Ser enquanto havendo distinção entre causa e efeito' se chama Não Ser, ou Supra-Ser, Supra-Substância. Só há uma Realidade, porque só há um Infinito. Se houvessem dois infinitos, algo do primeiro precisaria estar ausente no segundo e vice-versa, e a ausência seria uma espécie de limitação. Daí os múltiplos infinitos já não poderiam ser o Infinito. Tudo é Um. O nome 'nada' é próprio porque conseguimos ignorar isso mesmo após conceber, ou seja, o Infinito é tão indeterminado que ao pensamento limitado equivale ao nada."
Outro: Esta afirmação absoluta de algo como base de todo conhecimento serve como um contra-argumento a Nietzsche, não? Segundo o conceito de vontade de poder na obra dele, toda afirmação de conhecimento não passa de um modo velado de impor uma vontade particular aos outros. Contudo, neste seu modo de entender, o conhecimento tem por base algo idêntico na vontade de todos, primeiro objeto da vontade individual, por assim dizer, além de também ser o primeiro objeto da inteligência. Lembra aquela estrofe do Raul:
Vontade e inteligência são um só.
A vontade é infértil sem saber.
A inteligência, débil sem querer.
Uma sem outra se reduz a pó.
O quarto integrante: Sim, e isso está na filosofia desde a refutação peripatética aos céticos. Acho que agora que não estamos mais discutindo é mais fácil determinar a razão para o cético negar a possibilidade do conhecimento. O ceticismo antigo mais radical, como o do Sexto Empírico, partia da ideia de que o sábio deve sempre acertar. Porém, como ele estava convencido de que o conhecimento era impossível, sempre baseando seus argumentos na redução da consciência a um objeto puramente espacial e temporal, o cético decidia que a melhor coisa a se fazer era suspender o juízo (époche). A grande questão é que o cético continuava vivo e portanto decidia fazer ora X e não Y. Preferir uma coisa a outra é uma forma de juízo, e isso se mostra até na decisão intelectual de suspender o juízo sobre tudo. Preferir à afirmação a suspensão de juízo, no fim das contas, é afirmar que este é superior àquele. O cético deseja uma prova para tudo porque idealiza uma verdade fora de si que lhe seja imposta de modo tão inegável que se justifique até mesmo a validez da lógica sem que ele mesmo tenha que em algum momento afirmar os primeiros princípios da lógica na questão do Ser, do haver algo e não o nada. Se ele tiver que admitir que a lógica é evidente, teria que ser ele e não outro a fazê-lo. Mas ele só quer uma verdade que subjugue a sua vontade, uma força exterior. Se a verdade tem algo a ver com sua vontade em afirmar os primeiros princípios evidentes da lógica de identidade, não contradição e terceiro excluído, então para ele já não pode ser a verdade mesmo. O ceticismo é uma dissociação dura entre vontade e inteligência que se pretende intelectual, mas é sub-intelectual justamente por estar desassociada de todo da vontade. O cético considera que afirmar a lógica é apenas mais uma imposição da vontade, idêntica a se afirmar um superhomem além da moral comum, como você bem disse. É como se admitir a lógica fosse uma trapaça para ele. A questão é que, por estar vivo, o cético ainda tem vontade e discerne entre as duas coisas, mas não admite isso e finge ignorar por esse ideal de inteligência sem vontade. O engraçado é que obrigar alguém a seguir a lógica em nada lhe oprime, porque os princípios são condições do seu próprio interior. Isso se demonstra no decorrer da vida, quando negar o evidente causa ainda mais sofrimento e afirmá-lo para entender nossa situação nos faz compreender nossos problemas e ameniza a dor. A inteligência tem o Ser como objeto por excelência, mas a vontade tem por objeto o próprio Sumo Bem além do Ser, a Supra-Substância. Aquilo que a inteligência não consegue conceber a vontade abarca. Basta manter em mente a distinção entre o nada absoluto, este que só mencionar (como se algo fosse) já escandaliza quem tenha bom senso, e o outro nada, que é ignorância e diferença, como Platão deixa bem claro no diálogo Sofista. Que ninguém confunda o primeiro, Não Ser no sentido que Parmênides atribuía ao termo segundo Platão no Sofista, com o segundo nada que não só existe como é objeto de contemplação. Quando alguém diz: 'rezo rezo e nada acontece', esse 'nada' não deve frustrá-lo, mas antes deve ser alvo de sua contínua atenção, porque é cousa sublime e sagrada para nós homens.
Outro: Nós falamos de muitos 'nadas' até agora. Um é o nada absoluto, do qual é desperdício de esforço falar por nada ser. Também nada é a ignorância, certo estado interior que se produz quando alguém não percebe uma coisa e passa a ter a opinião de que ela de fato não existe, porque — assim como Platão explica — confundiu uma memória semelhante a algo presente com este mesmo algo ali (como um senhor cego e meio surdo que, ao ouvir Platão falando, pensasse ser Sócrates diante dele — concluindo que Platão não está presente por exclusão, já que pensa ser outro que Platão falando); assim nos ensinou Agostinho no seu De Magistro. Ainda outro nada é a oposição que Platão chama de 'não ser' no diálogo Sofista, porque quando falamos de algo que não é grande, ninguém se refere ao nada enquanto tal, mas algo pequeno, algo que é. O Pequeno é um ser que é separado a partir do Ser enquanto tal para opô-lo ao outro ser, que tem a primazia, o Grande. E o Grande, para não ser o Pequeno e ter primazia diante do Pequeno, tem de participar do Outro, do qual todas as outras formas participam exceto o Bem, que não tem oposto. O 'nada' daquele que reza é ignorância e oposição. Ignorância, porque — sabendo que Deus sempre nos providencia tudo o que precisamos a cada instante e que Ele quer que nós oremos — ainda assim crê a si mesmo desprovido do fruto da sua oração. Oposição, porque neste mesmo instante em que se vê sem o fruto devia perceber que a oposição entre sua expectativa (de ter em posse algo que pediu a Deus, seja um bem mundano como a saúde ou o livramento da angústia que os santos desfrutam no céu) e a privação deste bem é algo, e esta privação é a justa ascese que ele deve suportar para ver-se agraciado por Deus.